ARTIGO CAROLINA DO CARMO CASTRO


A Identidade Goiana e Suas Representações Sob a Ótica de um Caipira.

Carolina do Carmo Castro

Resumo:

O resgate histórico de uma sociedade é um meio pelo qual, se conserva a identidade de um povo. Em culturas orais, as características socioculturais são preservadas por meio de costumes e das estórias contadas entre gerações.
Este artigo apresenta a cultura sertaneja em Goiás e suas representações, a partir do estudo de Geraldinho, um pequeno sitiante de Bela Vista famoso pelos seus causos, que embora sejam vistos como um espetáculo de humor; são manifestações da cultura popular rural. São ritos populares, assim como os provérbios, as modinhas, as festas religiosas, tornando-se assim, mecanismos de acesso metodológico as práticas e representações da cultura popular rural em Goiás.

Palavras- chaves: Geraldinho – Goiás – cultura popular


Abstract

The Historical society rescue it’s a way to conserve the identity of a folk traditions. In oral cultures, the cultural and sociological characteristics are preserved by actions and tales transmitted over generations.
The following article presents the country culture from Goiás and their representations by the study of Geraldinho, a small farm keeper from Bela Vista who becomes famous thanks to their funny tales. Such tales are manifestations of country popular culture. Those popular rituals, such as “provérbios”, “modinhas and religious parties are mechanisms of methodological access to practice representations of Goiás popular culture.


Keywords

Geraldinho – Goiás – folk culture


O ato de contar histórias não é apenas uma manifestação artística. Sendo uma tradição milenar, ela surgiu juntamente com a linguagem articulada para fins específicos. Nas sociedades tribais primitivas, o ato de contar histórias foi durante muito tempo utilizado como recurso na transmissão dos conhecimentos, dos costumes, das crenças, dos mitos e dos valores que foram acumulados e preservados pelas gerações.
Um grande exemplo da arte de contar histórias foi Geraldinho, um pequeno sitiante que residia na área rural do município de Bela Vista, Goiás; que pelo seu modo de falar, caracteristicamente sertanejo, e pela sua habilidade em prender atenção do público com seus divertidos causos, obteve sucesso imediato na mídia.
A grande mudança geopolítica em Bela Vista, se deu com a criação do município de Goiânia, em 1935, sendo que Bela Vista foi um dos que cedeu terras para a nova capital (os outros foram Campinas, Hidrolândia, Anápolis e Trindade). Sobre as origens das cidades goianas, Pinheiro revela que:
“Com uma visão quase sempre mítica das origens de suas cidades, a memória dos habitantes de Goiás, saindo da mesmice da realidade sertaneja, criou enredos aformoseando de certa maneira as narrativas sobre a origem de alguns núcleos urbanos. Em busca do diferente de criar sua própria identidade, algumas cidades mergulharam no passado recriando-o com base em algum fato ou dado histórico conservado na memória”. (PINHEIRO, 2003, p.53).

Descartando questões de ordem administrativa, o advento de Goiânia, na década de 1930, praticamente não produziu fortes alterações no cotidiano da população de Bela Vista, pois era grande à precariedade das estradas e dos meios de transporte. No entanto, o forte crescimento demográfico da capital a partir dos anos 70, a pavimentação das rodovias e o melhoramento no transporte coletivo resultaram em uma influência cada vez maior de Goiânia sobre Bela Vista e sobre as demais cidades do Entorno. Esse processo, na qual as cidades próximas tornam- se dependentes de Goiânia é denominada de metropolização. As mudanças acarretadas pela metropolização provocaram a emergência de discursos ufanistas em relação ao progresso. Um exemplo disso é o poema “Bela Vista, ontem e hoje”
O pequeno arraial...
Agora é Bela Vista
O progresso sempre aumentando
Temos rodovias asfaltadas
Que liga a capital dos goianos
Temos prefeito trabalhador
Honestamente administrando
A cidade e o município
Hoje está aniversariando. (Nascimento, 1981)

O poema é um exemplo típico da ideologia do progresso, separando o ontem (mundo da tradição) do hoje (mundo da modernização). Discurso este semelhante ao da transferência da capital em que Gomide, em seu estudo revela que na década de 30, a transferência da capital (sede política) da cidade de Goiás para Goiânia, foi impulsionada pela idealização de um espaço urbano que fomentasse maior qualidade de vida, produtividade e desenvolvimento (discurso da modernidade). Criou-se assim o discurso da tradição como justificativa para a preservação do espaço urbano da cidade de Goiás.
Geraldinho é de grande importância para o estudo da cultura sertaneja em Goiás. Seus causos são resquícios do dialeto caipira , modo de falar predominante em Goiás no século XIX e início do XX. Gradualmente, com o desenvolvimento urbano e,
conseqüentemente, com o desenvolvimento do sistema educacional e a implantação de
um modo de expressar baseado na gramática normativa, o dialeto caipira foi se extinguindo.
Os lingüistas consideram regionalismo a preferência de certas expressões ou construções a outras em uma determinada região do país; quando elas se aprofundam, temos o dialeto. A maioria dos autores que estuda essa forma de expressar do sertanejo, considera-a como um dialeto. Para maior aprofundamento sobre a linguagem caipira, ver as obras de Veado (1982) e Vilefort (1985).

Além da linguagem caipira, os causos de Geraldinho são depositários das práticas e das representações da cultura rural em Goiás. Por meio deles, é possível compreender aspectos da mentalidade da cultura popular dos homens e mulheres dos séculos passados. Pode-se, por exemplo, analisar a moralidade e sexualidade (como no causo da Namoradinha), a crítica a algumas inovações tecnológicas da modernidade (como no Causo da Bicicleta), as formas de ajuda mútua, a desigualdade social (Causo do Maribondo) e assim por diante.
Como exemplo das possibilidades analíticas de seus causos, citamos a parte final do Causo da Bicicleta, no qual, depois de relatar as suas atribuladas desventuras decorrentes do seu primeiro encontro com esse meio de transporte.

“Interô treis objeto que pra mim eu não tem confiança mais nunca: a bircicleta, e o cigarro de papel e sordadu tamém.” (Geraldinho e outros).
O repúdio pelos dois primeiros se compreende facilmente pela lógica da história narrada: a bicicleta foi fonte de escoriações e o cigarro de papel, fonte de queimaduras. Mas como explicar o repúdio pelo soldado, sem nenhuma conexão com a história narrada no causo? A minha hipótese é que essa aversão ao "soldado" não é meramente uma opinião individual; mas sim, um sentimento coletivo do homem rural goiano no século XIX e XX. Ela seria um fator distintivo do modo de pensar da população rural goiana, que poderia ser denominada, sociologicamente, de representação coletiva:

"As representações coletivas são produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; para criá-las, uma multidão de espíritos diversos associou, misturou, combinou suas ideias e seus sentimentos; longas séries de gerações nelas se acumularam sua experiência e seu saber" (Durkheim, 1996: XXIII).

Rabelo discute a questão da resistência dos indivíduos ao poder disciplinador, no capítulo: “Disciplina e Desobediência Civil” de sua tese, demonstrando que as resistências à normatização dos comportamentos é realizada por parte não só dos indivíduos das camadas populares, mas também de alguns elementos da camada dominante, em defesa de seus hábitos e costumes, bem como dos seus interesses individuais. De acordo com Rabelo, essas resistências que são vistas pelos agentes da Ordem como desordem, são nitidamente, ações de desobediência civil.
Outro causo de Geraldinho que revela essa repulsa por policiais é o causo do soldado em que o narrador demonstra o seguinte perfil do soldado:

“Criatura desaforada que judia do povo, agora pra eles me apersegui direito, mudaram o tipim da rôpa e arrumaram um avião lerdo com uns papa-vento no lombo e di vez em quando eles passa por riba di casa , pára ali, dá uma examinada i segui”. (Geraldinho e outros).

O soldado como processo disciplinador associa-se com o debate proposto por Rabelo, quando o mesmo afirma, que os discursos e práticas normativas, justapondo-se, influenciando-se uns aos outros e entrando em conflito entre si, objetivam uma ordem unívoca centralizadora e anônima que determinaria o que é normal e desejável na convivência social. Os comportamentos que não se enquadravam nos padrões disciplinares vigentes são desqualificados como “desordem”, agentes do caos que desestabilizam a sociedade, por isso a necessidade do soldado como elemento coercitivo e ordenador.
Os causos de Geraldinho não provocam riso apenas para os integrantes da cultura popular, mas também nos integrantes da "industria cultural", conforme expressão de Adorno/Horkheimer (1985:113-156). Contudo, não acreditamos que o sucesso na mídia de Geraldinho seja decorrente apenas do "poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade" (idem, 114). Ele deve ser explicado, em termos conjunturais, pelas relações íntimas que a sociedade urbanizada de Goiás ainda mantém com seu passado rural.
Porém o sucesso na mídia de Geraldinho está relacionado também a mudanças estruturais profundas por que passou a sociedade nos últimos anos. Uma dessas mudanças foi a destradicionalização conforme foi definida

"uma ordem tradicional pós-moderna não é aquela que a tradição desaparece. É aquela que a tradição muda o seu status: as tradições têm de se explicar, tem de se tomar abertas à interrogação e ao discurso." Giddens (1996: 13)

esse ambiente, nada é dado, mas tudo é construído. Os antigos referenciais fornecidos pela tradição (como a comunidade de vizinhos, o parentesco e a religião) já não determinam mecanicamente a vida do indivíduo. Por outro lado, a ciência, desgastada pelas idéias conflitantes de seus especialistas, não tem credibilidade suficiente para amparar os indivíduos na busca de identidade e assim Freitas em seu estudo sobre Medicina e planejamento urbano revela que com o Estado Moderno, houve uma aceitação da maior intervenção do Estado no campo da saúde através dos interesses individuais, familiares e comunitários de seguridade social e de serviços organizados de saúde.
Assim, o homem e as mulheres pós-modernos buscam uma satisfação personalizada, podendo, inclusive, resgatar valores do mundo tradicional, satisfazendo suas nostalgias de uma vida próxima à natureza e à comunidade. Como exemplo, identificamos a crescente procura pelos hotéis –fazendas.
A maioria dos estudos sobre religião, talvez inspirados na sociologia da religião de Durkheim que estabelece um rígida separação entre o sagrado e o profano, quase sempre ignorou a presença do lúdico e do humor na devoção religiosa popular. Na verdade, essa presença era bastante forte na religiosiodade da Idade Média e Renascimento europeu, quando o catolicismo estava demasiadamente próximo às práticas e representações populares. Por isso,
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Segundo Durkheim (1996:23), “Os dois mundos”, isto é o sagrado e o profano, “não são apenas concebidos como separados, mas como hostis e rivais um do outro”. Disso deriva que “a coisa sagrada é, por excelência, aquela que o profano não deve e não pode impunemente tocar”.



A tradição antiga permitia o riso e as brincadeiras licenciosas no interior da igreja na época da Páscoa. Do alto do púlpito, o padre permitia-se toda a espécie de histórias e brincadeiras a fim de obrigar os paroquianos, após um longo jejum e uma longa abstinência, a rir com alegria e esse riso era um renascimento feliz. ( Bakhtin, 1999: 68).

As reformas protestantes e católica do século XVI produziram uma forte mudança na consciência religiosa, distanciando-se das práticas religiosas populares. Do lado católico, essa estratégia de disciplinar a religiosidade popular foi denominada de “romanização”, sendo que

Os reformadores também incentivaram o desenvolvimento de uma vida litúrgica mais efetiva nas paróquias, outra maneira de desviar a atenção dos rituais da religião popular. Tentaram incrementar a consciência leiga de que a igreja paroquial era um lugar sagrado, proibindo que fosse utilizada para cerimônias locais irregulares. (Davidson, 1991:47)

Com isso, a liturgia católica e protestante afastou-se do lúdico e do riso e passou a enfatizar “o pecado e o medo” como estratégia de conversão. Em Goiás, um marco dessa nova estratégia da Igreja foi a vinda, em 1895, dos padres redentoristas alemães, que tinham a responsabilidade de retirar das mãos dos leigos a lucrativa Romaria de Barro Preto. Esses padres estabeleceram-se em Campinas e sua influência se estabeleceu por todas localidades próximas, inclusive Bela Vista. Eles foram os principais expoentes da romanização em Goiás, condenando com veemência as práticas do catolicismo popular em Goiás.
Gumiero em seu estudo sobre os tropeiros em Goiás destaca que as festividades religiosas eram simples, mas concorridas, já que a religiosidade é um traço marcante do goiano. Em uma sociedade marcada pela estagnação econômica, carestia, maus exemplos das autoridades, isolamento e violência, a religião era um dos únicos meios de solucionar os muitos problemas que assolavam a população.
Já a diversão dos tropeiros era a conversa, a prosa com os companheiros, o cigarro e a música, sendo que a conversa tinha por tema, os acontecimentos do dia, ou então repetiam-se lendas e contos goianos. Ao chegar nas cidades sertanejas, uma distração era a “rodinha”. Nas esquinas das ruas, os homens reuniam-se para a conversa fiada, o passa-tempo, nela o tropeiro não poderia faltar, tal fato nos faz associar tais rodinhas às rodas caipiras onde se contava os causos. Deste modo, é indiscutível que o tropeiro foi um grande agente que contribuiu para manter viva a cultura popular goiana.
Os causos de Geraldinho demonstram uma certa vinculação com as práticas e as representações da cultura popular sertaneja goiana. Por isso, eles são um material raro r rico para estudar a maneira de pensar e agir que dominou uma época, mas que hoje é motivo de riso: o que é bastante significativo da distância temporal e cultural de nossa época em relação a época de nossos antepassados.
Nisso reside a importância da figura de Geraldinho para as ciências humanas. Ele acompanhou todas as transformações que a sua Bela Vista passou no século XX e, através dos seus divertidos causos, fez uma leitura dessas mudanças na perspectiva da cultura sertaneja, sempre rica e bem-humorada.
A pesquisa, em termos metodológicos, confirma as novas possibilidades advindas com a História Cultural, aberta à novos temas e novas fontes, prometendo um horizonte fértil de complementaridade aos ricos estudos de história social e econômica existentes na historiografia goiana.
Enfim, a risada de Geraldinho constitui-se como um lembrete de uma época em que os homens e as mulheres sabiam rir e tudo: do sexo, das funções corporais, da Igreja, dos santos. Talvez os antigos soubessem que em certas ocasiões,o riso era um melhor remédio.


Referências Bibliográficas

FREITAS, Lena Castello B. F. Saúde e Doenças em Goiás: a medicina possível. Goiânia: UFG, 1999, p. 239-288.
GOMIDE, Cristina Helou. Centralismo político e tradição histórica: Cidade de Goiás (1930-1978). Goiânia: UFG, 1999, p 89-197. (Dissertação de Mestrado).
GUMIERO, Maristela P. da P. Os tropeiros a História de Goiás. Século XVIII e XIX. Goiânia: UFG, 1991 (Dissertação de Mestrado)
PINHEIRO, Antônio César Caldas. Os tempos míticos das cidades goianas: mitos de origem e invenção de tradições. Goiânia: UFG, 2003, p. 20-73. (Dissertação de Mestrado).
RABELO, Danilo. Os excessos do corpo: A normatização dos comportamentos na Cidade de Goiás, 1822 – 1889. Goiânia: FCHF/Universidade Federal de Goiás, 1997. (Dissertação de Mestrado)

Carolina do Carmo Castro
é mestre em História e 
Coordenadora e Professora 
do curso de História da 
Faculdade Suldamérica